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Christiania, o paraíso perdido

No centro de Copenhague, Christiania é a comunidade alternativa mais conhecida do mundo - e corre risco de ser engolida

Pablo Miyazawa e Thiago Guimarães Publicado em 06/08/2007, às 15h29 - Atualizado em 01/09/2007, às 20h16

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Bicicletas são o meio de transporte principal para moradores e turistas, como Edgardo Martolio - Arquivo Pessoal
Bicicletas são o meio de transporte principal para moradores e turistas, como Edgardo Martolio - Arquivo Pessoal

Caminhar do centro de Copenhague, na Dinamarca, na direção de Christiania, é ter a sensação de estar seguindo para o lugar errado. A incerteza vem na forma de um vento gélido que agride impiedosamente quem percorre a longa ponte Knippelsbro sobre as águas do mar Báltico, e na escassez de pedestres e estabelecimentos comerciais, que desaparecem a olhos vistos. A imagem da torre dourada em espiral da igreja Vor Frelsers Kirke sinaliza a aproximação de um mundo à parte. Diferente da Berlim até 1989, a Rua Prinsessegade - fronteira entre a capital da Dinamarca e a mais célebre comunidade hippie do mundo - não traz nenhuma placa advertindo sobre a chegada de um território hostil. Os limites de Christiania deveriam começar onde Copenhague termina, mas hoje já é quase impossível distinguir o início de seu fim.

Christiania - ou "Freetown" (cidade livre), como é chamada por seus moradores - comemorou 35 anos de sua existência em setembro de 2006. Fundada no auge do movimento flower power em uma antiga área militar abandonada no bairro de Christianshavn, tinha como objetivo ser "uma sociedade alternativa livre, baseada na convivência com o próximo e com a natureza". Grupos de dezenas de dinamarqueses invadiram o terreno de 340 mil m2 pela primeira vez em 1969. O derradeiro movimento ocorreu em setembro de 1971, após o jornal alternativo Hovedbladet publicar em sua primeira página um artigo conclamando leitores a "ocupar em definitivo a área proibida" e a "construir uma nova sociedade do zero". O espaço extenso demais e a enorme quantidade de invasores impediram que polícia e governo conseguissem intervir em tempo. Nascia o mais famoso caso de "experimento social" de que se tem notícia.

Autodenominada "o pulmão verde de Copenhague", graças à vasta área de vegetação virgem que abraça seus domínios, Christiania é o lar de aproximadamente 900 pessoas que vivem sob um grupo de leis distintas do restante da Dinamarca. O modelo de autogestão praticado por seus moradores é a "democracia do consenso", no qual as decisões essenciais surgem da concordância de todos os participantes de uma assembléia. Não há hierarquias: os christianistas participam ativamente da implantação do que é decidido coletivamente e resolvem em comunhão o destino do orçamento anual de quase 18 milhões de coroas dinamarquesas (aproximadamente R$ 6,7 milhões), obtido com a contribuição mensal dos moradores e os rendimentos dos negócios locais. Esta "caixinha" comunitária dá conta das despesas com eletricidade, água, esgoto, taxas municipais e ainda um conjunto de serviços que serve somente aos moradores de Christiania, como correio, creches, oficinas, asilos e um moderno sistema de coleta e reciclagem de lixo. Na prática, um terço dos moradores adultos tem emprego e ganha seu próprio dinheiro, enquanto um terço é sustentado pelo poder público e o restante, aqui incluindo os traficantes, não possui nenhum rendimento oficial. Ninguém é dono da habitação em que vive. Carros são proibidos de circular, apesar de muitos moradores possuírem automóveis (ironicamente, o índice de carros a cada mil habitantes é mais alto em Christiania - 190 por grupo de mil habitantes - do que na própria Copenhague - 182 por mil). Em 1997, a cidade criou sua moeda própria, o Løn, usada somente em transações locais. Entre os atuais moradores, há artistas, músicos, escritores, cientistas, filósofos, jornalistas e comerciantes. "Devido ao modo como a imprensa diária nos trata, há muita gente que não entende o que Christiania significa", reclama o alemão Karsten Schubmann, morador do local desde 1978 e um dos poucos a ter seu próprio site, www.karsten-s.dk. "Infelizmente, muitos moradores atuais não têm a ver com os ideiais e as perspectivas de quando a comunidade foi criada. Pessoas são estranhas: com o tempo, só querem saber de seu próprio conforto. Se puséssemos mais ênfase nas condições para se viver aqui, teríamos mais gente se identicando com nossos princípios socialistas", diz.

O tempo em christiania parece não andar, apesar da quase inexistência dos tradicionais estereótipos hippies. A "cidade livre" é uma desequilibrada mistura de vida campestre e metropolitana. Localizada em meio a prédios de apartamentos e uma área comercial silenciosa e escassa, ela poderia ser facilmente ignorada por quem não a procura.

A entrada principal mantém um portal onde se lê o nome do lugar esculpido em letras de forma douradas entre dois totens trabalhados em madeira. Nos demais acessos, nem uma indicação sequer. Asfalto e calçadas deixam a desejar. O chão de terra, entremeado de poças de água, dependendo da época do ano, praticamente demarca o território livre. Indica até onde vão os cidadãos dinamarqueses e a partir de onde se sentem em casa os cidadãos do mundo.

O que parece descaso não pode ser consertado, porque faz parte da paisagem toda particular de um verdadeiro parque temático que recebe mais de um milhão de visitantes por ano. As opções para o turista têm se diversificado e Christiania tem sido mais do que simplesmente um cenário bucólico de uma "Hippielândia" ou mesmo uma "Hemplândia". Barracas e improviso são coisas do passado. Pequenas casas de argamassa e cimento espalham-se em meio à área verde, divididas por muros coloridos dispostos de maneira pouco lógica. A inexistência de placas indicativas torna o ato de se perder simples, mesmo com um mapa em mãos. Sem circulação de carros nem iluminação pública, as ruas permanecem na mais completa escuridão durante a noite, tendo apenas as luzes dos estabelecimentos comerciais como referências.

Da rua principal, sugestivamente denominada Pusher Street - ou Rua dos Traficantes -, enxerga-se a estátua do Cristo Redentor, o mar e, se bobear, a Garota de Ipanema, tudo pintado em um mural. É próximo a esse Rio de Janeiro escandinavo que fica o ponto de venda de maconha e haxixe, as drogas "oficiais" de Christiania. De lá também se avistam bares e barracas de artesanato. As camisetas têm dizeres libertários - Che Guevara, óbvio, marca presença. Acessórios para o consumo de maconha são vendidos com discrição. O comércio de drogas é ainda mais recatado, longe da vista alheia. Um galpão além oferece itens para quem quiser levar um pedaço de Christiania para casa: livretos que explicam a comunidade desde os primórdios, camisetas com a inscrição "Save Christiania" e adesivos com a bandeira não-oficial - três círculos amarelos sobre fundo vermelho. As mercadorias também são vendidas no portal online christiania.org, atualizado pelos próprios christianistas.

A melhor opção de comida barata para o viajante sem dinheiro são as pizzas vendidas em um trailer estacionado ao fundo do camelódromo. O italiano de gestos abruptos e voz alta vende pedaços quadrados de pizzas bem recheadas a 20 coroas dinamarquesas (R$ 7,50), regados a muitos gestos e pouco azeite. Ele vende a iguaria com perguntas, um pouco de desconfiança e indica à reportagem um brasileiro que também mora por ali. Aparentando 45 anos, boné escondendo a calvície, o gaúcho Abel trabalha como uma espécie de zelador de Christiania. É o responsável por montar e desmontar as barracas, além de ajudar os ambulantes a tomar conta das mercadorias e quebrar galhos em geral. Enquanto isso, junta dinheiro suficiente para viver melhor em Copenhague do que no interior do Rio Grande do Sul, onde mora a família. Passa o dia na praça, assim como tantos outros imigrantes que fazem do camelódromo de Christiania uma verdadeira festa das nações. Cada dono de tenda tem uma origem diferente. A banca do africano fica a poucos metros da pizzaria do italiano. O argentino fica em um lugar privilegiado bem na entrada da feira, vendendo bijuterias. Havia um uruguaio, que se foi: voltou ao país depois que sua mulher dinamarquesa resolveu trocá-lo por outra. De vergonha, largou a vida simples em Christiania para nunca mais pisar lá. No mosaico das culturas, atritos também afloram. Histórias de estranhamentos entre vendedores existem aos montes. Há aqueles que mal falam com os demais, os de temperamento imprevisível e até mesmo os com comportamento anti-social. Abel, brasileiro que é, transita bem por quase todos os círculos. Ele abre o cadeado da velha porta de madeira de um galpão e mostra os bens que acumulou em sua permanência na comunidade: computadores, eletrodomésticos e utensílios diversos. "Os dinamarqueses jogam muita coisa nova fora, é só andar por aí e achar", conta. "Já tentei até doar uma parte para o Brasil, mas é complicado. Vai ficando tudo por aqui mesmo."

Culturalmente, a cidade é um organismo pulsante. Atuações nas áreas teatral, musical e nas artes plásticas são freqüentes, assim como atividades políticas de guerrilha, nas quais o christianista dá vazão ao seu engajamento. Meditação e ioga são unanimidades locais, mas não impedem um gosto pela vida boêmia. O local mais movimentado da noite de Christiania não poderia ter outro nome que não Woodstock, um arremesso violento 40 anos para trás no tempo. Sobre o palco logo na entrada, um elo perdido do Grateful Dead despeja um repertório carregado de reverberação e lisergia. Bancos de madeira para quatro ou cinco clientes dispõem-se em frente a mesas sobre as quais já se derramou muita cerveja. Nesses bancos se faz como o público daquele bar: apóia-se à frente de alguma garrafa, deita-se sobre o banco para dormir, ou simplesmente senta-se lado a lado com um estranho. Beber sozinho é um convite à companhia de alguém disposto a discorrer sobre aquecimento global, economia mundial ou a resistência dos países de Terceiro Mundo. Quase 70% dos habitantes têm entre 30 e 59 anos. São mulheres sozinhas, velhos roqueiros de rosto desfigurado pelas drogas, turistas extasiados pela suposta liberdade não vigiada. A placa na parede não nos permite esquecer das quatro regras definitivas de Christiania: "No to Hard Drugs, Rocker Badges, Weapons and Violence" (não às drogas pesadas, distintivos, armas e violência).

Apesar de não ser bem-vinda, a polícia circula livre. Em uma noite de domingo no fim do outono, meia dúzia deles marchavam em fila próximos a um prédio residencial. A movimentação apática dos homens de azul resultou na detenção de um homem, provavelmente um traficante de haxixe. Na Dinamarca, a "Politi" também não consegue (ou não quer) pescar os peixes grandes.

"A polícia revista quem entra na cidade. Ficam na ponte na tentativa de conter o tráfico, mas é como se não houvesse o que fazer. É um lugar em que as liberdades individuais parecem existir, mas há uma estranha sensação de vigilância no ar", diz o jornalista argentino Edgardo Martolio, que esteve na cidade em 1978, 79 e em 2005. "Nos anos 70, era uma cidade anti-higiênica, feia e bagunçada, nem parecia a Europa. Hoje, a organização é maior, a limpeza também. De um certo modo, os moradores se civilizaram, o que dá mais força à experiência", conta.

A alcunha "freetown" (território livre) soa como ironia: a construção de novas casas é proibida dentro dos limites de Christiania, e há muito tempo não há espaço para novos moradores. Interessados em aderir precisam esperar por um espaço vago em uma habitação já existente. A burocracia é maior do que se poderia esperar - um demorado processo de inscrição, seguido de entrevistas com inquilinos. A espera por uma vaga costuma demorar.

É difícil afirmar hoje se o local algum dia chegou a representar uma alternativa de vida oposta ao Estado dinamarquês. Seja como for, mochileiros, hippies, andarilhos e imigrantes ainda enxergam na cidade um abrigo. A principal atração turística da capital é a perfeita representação do modo de vida liberal da Dinamarca, apesar de os contrastes entre a Christiania de hoje e a Copenhague de sempre terem se diluído pela crescente mercantilização da cultura hippie, pela leva de imigrantes em busca de melhores condições de vida e pela errática imagem do bairro como um dos paraísos europeus das drogas. Substâncias pesadas como heroína, cocaína e anfetaminas foram expurgadas da região em 1979, em um movimento coletivo que baniu viciados e traficantes. Determinou-se que a maconha e o haxixe seriam os únicos entorpecentes ali tolerados, em uma decisão que fez de Christiania o mercado número 1 de haxixe da Dinamarca, alcançando mais de US$ 300 milhões por ano em rendimentos. Para inibir

a negociação da droga, um esforço conjunto do governo e da polícia se deu na forma de batidas, ações coibitivas e ordens de prisão. A perseguição persistiu até 2004, quando os moradores optaram por impedir a venda das substâncias dentro de seus domínios. O comércio ilegal prossegue em nível menor. O que não diminuiu foi a repressão na região, em atitudes condenadas pela opinião pública pela dureza com que são executadas.

O tenso conflito com o governo dinamarquês perdura desde 1971. Apesar de ter aceito a existência de Christiania como um "experimento social", planos são elaborados constantemente visando a legalização e a normalização da área, em um infindável litígio que tem favorecido os resistentes christianistas. A sociedade dinamarquesa abraça o tema e se divide entre tolerar Christiania, protegê-la ou rejeitá-la. Os opositores, em menor número, alegam que os moradores da cidade livre não pagam impostos pela área supervalorizada que ocuparam, e que o local abriga e facilita o tráfico de drogas. Em sua defesa, os christianistas alardeiam que pagam impostos mais altos do que o cidadão de Copenhague. "Christiania é uma sociedade alternativa formada por pessoas que não querem viver da mesma maneira que as pessoas normais, e também uma sociedade formada por pessoas que não conseguem viver bem em uma sociedade normal", define o jornalista Hans Drachmann, do tradicional jornal liberal Politiken, um dos odiados pelos christianistas. "Mas a maioria não quer que Christiania acabe. O dinamarquês gosta de sentir que há abertura na sociedade para este tipo de iniciativa."

No parlamento dinamarquês, o apoio a Christiania é tradicionalmente maior entre os partidos de centro e esquerda. Desde 2002, a Dinamarca é governada pelo Partido do Povo Dinamarquês, composto por conservadores e liberais, inimigos históricos da cidade livre. Apresentado pelo governo no final de 2006, o novo projeto de regulamentação de Christiania teve aprovação da maioria do parlamento, inclusive de partidos historicamente contrários a tais proposições. O projeto condiciona a manutenção de Christiania a certas medidas, como a liberação para construção de novas casas, o pagamento de aluguel por todos os moradores de Christiania, a abertura das fronteiras para as pessoas que lá quiserem viver, além daquela tida como a mais controversa de todas: se o projeto vingar, todas as leis da Dinamarca passariam a servir também aos cidadãos da comunidade.

É razoável afirmar que Christiania passa pelo momento político mais delicado de sua história. Acusada por seus opositores de ser uma sociedade cada vez mais fechada e intransigente, que não permite nem a permanência de novos residentes e não aceita se submeter a novas regras, a cidade livre também não conta mais com o suporte irrestrito de quem sempre a apoiou. A magia começa a se perder até mesmo para quem largou tudo em nome da causa. "Christiania é um pedaço indissociável da Dinamarca, mas nem é mais tão especial assim", lamenta o morador Karsten Schubmann. "O que a destaca é a sua intenção de ser algo auto-gerido, sem a rigidez do aparato burocrático. Mas coisas ficam mais engessadas a cada dia."

O prazo para os christianistas se declararem contra ou a favor das propostas do governo dinamarquês se esgota ainda este mês. Seja o resultado qual for, o futuro de Christiania promete passar distante dos utópicos mandamentos propostos por seus idealizadores. Se muitas de suas características se perderam no tempo, pelo menos permanece intacto seu status de santuário contemporâneo da paz, do amor e da liberdade.

O sonho, por enquanto, ainda não acabou.