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Senhora do Destino

Tulipa Ruiz soube escolher o momento certo para começar a cantar. Hoje, ela é a maior promessa da música popular brasileira

Por Paulo Terron Publicado em 11/05/2011, às 15h25

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FOTO IORAM FINGUERMAN
FOTO IORAM FINGUERMAN

Sentada no sofá, Tulipa Ruiz folheia um antigo álbum de fotografias, já com as páginas soltas e descoladas. "Fui lá no meu pai roubar estas fotos, ele ficou puto comigo!", ela conta, sorrindo. Entre fotos que registram datas especiais e momentos de lazer (como uma viagem ao parque de diversões de Beto Carrero, mais de 20 anos atrás), ela passa por uma imagem peculiar: dois senhores - um deles bem mais velho que outro, beirando os 80 anos, segurando um violão - interagem casualmente. "Ah, isso aqui não é nada", diz ao tirar a imagem do caminho. "É o Lanny Gordin, que deu umas aulas de violão para o meu avô. Surreal, né?", Tulipa conta, se referindo ao lendário guitarrista brasileiro. "Ele é amigo do meu pai, eles já moraram juntos. Uma época meu avô encanou de tocar... Meu pai diz que ele tinha ouvido musical porque ele era taquígrafo, trabalhava na PanAir." As aulas não levaram a nada, mas mostram que a musicalidade sempre foi uma constante na família de Tulipa, tanto no ramo Ruiz (da mãe) quanto no Chagas (do pai), mesmo que demorasse décadas para se manifestar.

Claro, o pai, Luiz Chagas - que a acompanha no disco de estreia dela, Efêmera, e nas apresentações ao vivo - tocou guitarra na Banda Isca de Polícia, de Itamar Assumpção, e foi figura marcante na Vanguarda Paulistana. Mas essa carga histórica perdeu força na infância de Tulipa devido a um fato muito simples. "O Itamar me dava muito medo! Pela coisa performática, eu tinha muito medo dos shows, me assustava demais. Só fui começar a curtir mesmo na adolescência." A influência paterna veio para Tulipa de duas formas distintas: a coleção de discos de Chagas, que a mãe, Graziella Ruiz (atriz formada na Escola de Artes Dramáticas, em São Paulo), levou para São Lourenço (MG) quando se separou, e os mimos enviados por ele, que também trabalhava como jornalista cultural. "O presente dele, quando me encontrava, era sempre música. Nossa relação sempre foi musical, o modo que ele conseguiu de se comunicar conosco." De New Kids on the Block a Guns N' Roses, o repertório desse diálogo "discográfico" era tão variado quanto contemporâneo. "Uma vez ele entrevistou o Slash!", entrega Tulipa, com uma gargalhada. "Na escola eu era até meio metida por isso. Eu tinha um autógrafo do cara do Oingo Boingo!" Antes mesmo de se fascinar com a capa de Some Girls, dos Rolling Stones, ou com a voz de Joni Mitchell e as canções do grupo Rumo, Tulipa já possuía uma trilha sonora constante. "Me lembro de ouvir música sentada naquele banquinho de bebê, e de meus pais ouvirem vinil alto. Eu devia ter uns 2 anos ali... Em casa a vitrola sempre esteve ligada." A mãe, que deixou de lado a carreira de atriz para trabalhar na prefeitura da cidade, gostava de ter um violão sempre disponível em algum cômodo da casa. "'Vai que chega alguém e quer tocar!', ela dizia."

Agora, superado o período de pavor e sustos, Tulipa serve como exemplo dentro de uma geração que se mostra perfeita em tradução: assim como ela soube reprocessar o trabalho da Vanguarda Paulistana, transformando-o em algo com um apelo pop que faltava ao movimento, jogado à pecha de maldito nos anos 80. O mesmo pode ser dito de Anelis Assumpção, filha de Itamar, e Marcelo Jeneci, autor de parcerias recentes com Luiz Tatit e José Miguel Wisnik. Nesse sentido, o fato de Tulipa ter se afastado da borbulhante São Paulo dos anos 80 a ajudou bastante. "Mesmo morando em outro lugar, São Paulo sempre foi algo para mim", ela explica, ao mesmo tempo que parece admirar a própria reflexão. "Porque eu era filha de um cara da Vanguarda Paulistana. Sampa! O som de Sampa..." Quando finalmente voltou para a cidade para estudar Comunicação & Multimeios, na PUC, em 2008, toda a ideia que ela admirava de longe foi colocada em contexto. "Viver em São Paulo é uma coisa difícil, mas eu tirei de letra. Morar aqui foi importante para entender a cidade, a Vanguarda." Ponto essencial para se compreender essa influência na música de Tulipa: a canção "Às Vezes", escrita por Luiz Chagas há cerca de 20 anos, e que só na voz da filha ganhou lançamento oficial. É a única faixa de Efêmera que não foi composta pela cantora - e, ainda assim, talvez seja a que transmita mais intrinsecamente o universo dela, dos passeios pela rua Augusta (que fica a uma caminhada curta de onde ela mora, na área central paulistana) ao romantismo nada piegas de versos diretos que sustentam a faixa, dispensando o refrão. "Gosto dessa música porque parece que ela vai acontecer sábado que vem, sabe? Ela é muito fresca, mesmo sendo uma das mais antigas do meu pai."

Não que a cidade tenha dominado por completo, restringindo o universo lírico de Tulipa. "Agora eu fico olhando para Minas, tento entender as influências de lá em mim", conta. "As duas [experiências de moradia] me alimentam muito. Ao mesmo tempo que estou muito 'urbanoide', me imagino em uma Toyota suja de barro, chegando ao meu sítio." Daí a criação de um termo para se definir, "pop florestal": uma música extremamente urbana, mas que olha com saudade e admiração o interior e seu clima pastoril. O ambiente do apartamento atual de Tulipa reflete exatamente isso, com uma atmosfera hippie-do-concreto: pilhas de DVDs, discos e livros estão amontoados de forma organizadamente displicente nas estantes de TV, com plantas (verdadeiras e artificiais) ladeando o ambiente. O violento Oldboy, do diretor sul-coreano Chanwook Park, está em cima do aparelho, mas a cantora confessa que é a série de vampiros True Blood que tem tirado o sono dela. "Comecei a assistir a primeira temporada e não consegui parar, virei a noite vendo."

O impacto materno também é importante, ficando exposto nos shows de Tulipa Ruiz, quando a performance importa tanto quanto o canto. Até o nome exótico veio de um filme, A Tulipa Negra, um item obscuro - ou "uma bomba", segundo a cantora - na filmografia de Alain Delon. "Eu nunca me imaginei cantora, eu odeio rodinha de violão - travo total", conta. "Descobri que existem vários tipos: canto de rodinha, de estúdio e de palco. Meu lance é com o palco. É o microfone, o espaço - eu sei o que estou fazendo ali." Pode ser no palco de uma casa escura e minúscula na rua Augusta ou no suntuoso Auditório Ibirapuera, a abordagem é a mesma, sempre efetiva: Tulipa canta suas músicas como se contasse histórias, dominando o ambiente com sua presença marcante, mas também incluindo a plateia nos diálogos, por meio de olhares diretos e confiantes. Não parece algo planejado, mas também não é completamente casual. "Gosto de pensar nas letras como recortes de imagens, flagrantes. Elas são momentos meus, na real. Quando as pessoas se identificam, passa a ser outra coisa", ela diz refletindo sobre o poder das letras e a forma como elas são transmitidas.

Na adolescência, quando já cantava (mas ainda não pensava em se dedicar exclusivamente a isso), Tulipa Ruiz foi integrante de um grupo performático amador, o quarteto feminino Improviso de Supetão. Na calmíssima São Lourenço, as integrantes logo ganharam a fama de malucas. "Mas éramos a única opção de cultura que [a cidade] tinha. Era uma mistura de teatro com música. Não tinha muitos planos, era bem curtição total." Certo dia, as garotas foram convocadas para uma reunião na prefeitura. Empolgação geral: será que o talento havia vencido a rejeição? "Todo mundo foi [à reunião] empolgado. 'Nossa, vão bancar a primeira ação performática do grupo!'" A proposta era algo bem diferente do que as garotas imaginavam: o município queria contratá-las para se vestir de Teletubbies na entrada da cidade e distribuir folhetos. Não havia explicação alguma para a ação surrealista, que pagaria um cachê de R$ 15. "Eu saí revoltada, achando que São Lourenço era inviável. E não é que uma das minhas amigas topou?"

Já em São Paulo, anos depois do trauma, o lado teatral ressurgiu de surpresa por meio de uma revelação intensa em uma apresentação da cantora norte-americana Meredith Monk. Ali ela entendeu que um show não era algo só musical. "Me deu um clique: a parada é sagrada, ela exige ritual. O espaço cênico é um lugar de poder, tudo pode no palco. Foi importante para mim descobrir isso. Ali [no palco] sou eu amplificada."

Se as preocupações da geração de tulipa fossem só estéticas, o caminho seria tão fácil quanto o sorriso da cantora, que parece nunca desaparecer de seu rosto. A revolução na indústria fonográfica pós-internet, que já se arrasta há mais de uma década e ainda não aponta para um caminho concreto, transformou os artistas em algo mais - uma metamorfose que inclui funções nem sempre agradáveis. "Minha preocupação agora é descobrir o que é ser artista hoje", ela suspira. "Direitos autorais, Ecad, festivais... A indústria está em uma curva maluca, ninguém quer mais [fazer e vender] disco. A princípio pensei: é cronicamente inviável, não dá, eu vou ter de continuar fazendo outras coisas. Eu tenho que pagar ensaio, músicos, van - como é que você ainda quer que eu seja criativa? Que coisa difícil!", reclama, concluindo com uma gargalhada estrondosa que parece soar como uma declaração da intenção de insistir. O susto inicial sobre a profissão, a queda do mito "cantor só precisa cantar", quase derrubou a vontade da principiante, que foi consolada por um amigo da mesma área. "Um dia, quando eu estava muito furiosa com isso tudo, o Tatá Aeroplano me disse: 'Tulis, é assim - é como se você tivesse acabado de chegar à faculdade, pegou a grade das matérias e está muito assustada. Mas você vai se graduando'." Mesmo nesse período de formação, ela conseguiu um feito impressionante: vender quatro mil cópias de seu disco, independente e com prensagem bancada por ela mesma. "Ou seja, é uma prova de que disco ainda vende, sim." Em março, Efêmera chega à Europa pelo selo britânico Totolo Music (que já colocou no mercado inglês o álbum Carnaval Só Ano que Vem, da Orquestra Imperial). Por aqui, algumas gravadoras já se mostraram interessadas em relançar Efêmera com uma distribuição mais efetiva.

Essa desilusão inicial é compreensível em quem cresceu em um mundo no qual as lojas de CDs ainda se encaixavam. E Tulipa não só viveu nessa época, mas também passou parte da juventude dentro de uma dessas lojas, no fim dos anos 90, em São Lourenço. Foi lá que teve as primeiras lições, completamente instintivas, de como a percepção do público não depende só da qualidade de um produto. "Tinha um painel [na loja] chamado 'os dez mais', eram os dez mais vendidos. Eu inventava, sempre", conta. "Era a minha diversão, os primeiros eram absurdos, sempre os menos vendidos! Eram os mais lado B. E nego entrava na loja e comprava. Isso é para ver como as pessoas são influenciáveis." Como o dono não ia muito à loja, o espaço se tornou um ponto de encontro para os amigos. "Era meu clubinho. Chegava alguma coisa, eu ligava para os meus amigos - que eram meus principais consumidores", diz. O proprietário também não saía em desvantagem, tendo o consumo interno como fonte de renda. "Eu gastava meu salário inteiro com discos", diz a artista, lembrando que na época se dedicava aos álbuns de Los Hermanos e Chico Science, sem escapar de modas como Green Day e Sublime.

Em uma daquelas conjunções raríssimas, assim se formou a artista Tulipa Ruiz: a dupla influência paterna, com a música complexa, "cabeça", que o pai produzia somada ao tempero pop do trabalho dele como jornalista, bateu de frente com o lado performático materno - apoiado diretamente pelo irmão músico. A divisão física entre a eventualmente claustrofóbica São Paulo e a saudade feliz da pequena São Lourenço foram cozinhadas sem pressa até o ponto certo. "Ter começado [a carreira] com 30 anos facilitou muito. Fiz tudo sem deslumbre", Tulipa sorri. "Eu estava mais madura, cantar era o que eu tinha de fazer naquele momento. Muita gente me dizia que eu deveria cantar, mas entrava por um ouvido e saía por outro." Até que entrou e ficou.