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A Alegria do Eterno Humorista

Homem que mais entendeu como fazer rir na televisão brasileira, Chico Anysio se livrou de enfrentar os politicamente corretos e tinha medo de ser demitido pela emissora que mais amou e criticou

Márvio dos Anjos Publicado em 13/04/2012, às 14h25 - Atualizado às 14h27

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<b>FELIZ</b> Chico em 2009: o homem de centenas de faces fez do sorriso alheio uma missão de vida - GEORGE MAGARAIA
<b>FELIZ</b> Chico em 2009: o homem de centenas de faces fez do sorriso alheio uma missão de vida - GEORGE MAGARAIA

Fazer uma entrevista é, antes de mais nada, negociá-la. O entrevistado tem todo o direito de demarcar que há assuntos sobre os quais ele não quer discorrer. Estabelece-se em off um piso moral, um pacto que pode ou não ser quebrado, dependendo da argúcia do entrevistador ou da empolgação do entrevistado. Com Chico Anysio, em novembro de 2008, foi assim. Quando conversei com ele a serviço da Rolling Stone Brasil, o maior comediante brasileiro de todos os tempos anunciou-me suas condições, com aquela voz firme que ele sabia modular tão bem: “Por favor, não escreva nada que me ponha em atrito com a Globo. Eu tenho contrato com eles até 2012 e sei que eles adorariam me demitir por justa causa”.

Chico Anysio me obrigou a fugir do óbvio. Desde a criação do TV Pirata, em 1988, o humorista se notabilizou por declarações ferinas contra qualquer tipo de humor que lhe fosse antídoto e qualquer grade da TV Globo que não lhe concedesse horário nobre semanal, o que ocorreu gradualmente quando José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, deixou a vice-presidência de operações da emissora para a chegada de Marluce Dias. Seria fácil conseguir que ele desse novas estocadas na patroa. Para maior captação de solidariedade, Chico ainda afirmou durante nossa conversa que não tinha guardado dinheiro e que, mesmo na geladeira, precisava do salário (equivalente a um terço do que ganhava quando estava no ar). Tudo para quitar despesas pessoais, pensões alimentícias e os aluguéis de seis comediantes idosos sustentados por ele. Contatado, André Lucas, filho do comediante e que também era empresário dele, mantém os nomes em sigilo: afirma apenas que os seis ainda estão vivos, mas que permanecem sem trabalho, seja por falta de oportunidades, seja por não terem condição física (mesmo após a morte de Chico, o auxílio aos comediantes idosos continuará sendo pago). E se Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho teve seis mulheres, sete filhos, um enteado e dez netos ao longo de seus 80 anos, o casamento mais duradouro foi mesmo com a emissora do Jardim Botânico, a quem ele deu duas centenas de personagens e dedicou quatro décadas de sua vida, desde 1968 – a maior parte delas liderando a audiência da faixa. E a Globo, de fato, foi a separação que mais lhe doeu na alma. “Não sei te dizer ao certo por que ele saiu da grade”, diz André Lucas. “Acredito que a emissora entendeu que era preciso uma renovação no humor. Mas a verdade é que não houve inovação nenhuma, trata-se da mesma coisa, mas diferente.”

Quando o coração de Chico Anysio parou de bater no dia 23 de março, findando três meses de internações quase ininterruptas, milhões de brasileiros rememoravam rostos diferentes para descrevê-lo. O arrogante galã Alberto Roberto, o decrépito Popó, o perna de pau Coalhada, o pastor Tim Tones – canalha mais sanguessuga do que o vampiro banguela Bento Carneiro –, o afetado pai-de-santo Painho, o político pulha Justo Veríssimo e, talvez o mais duradouro e querido deles, o Professor Raimundo, entre inúmeros outros. Em cada um desses personagens, uma frase inesquecível, um tom de voz marcante, uma roupa facilmente identificável. A morte de Chico Anysio foi, sem exagero, um genocídio na comédia brasileira. E provocadora também: ele morreu em uma época na qual o Brasil redefine seu humor. A globalização, os canais pagos e a internet expuseram o que não tínhamos e o que nos sobrava em excesso na TV aberta. Em um país em desenvolvimento, com educação e oportunidades tão desiguais, os índices de audiência exigidos pela televisão se tornam proibitivos para uma produção de humor intelectualizado/ classe média/sem culpa. Por exemplo, uma piada como o funk “Gaiola das Cabeçudas”, de Marcelo Adnet – que foi sucesso na MTV e no YouTube citando Ionesco, Jung e Vivaldi –, não se sustentaria até o fim do bloco. Não somos o país que faria da Inquisição Espanhola um hit da TV aberta, como fez o Monty Python, no Reino Unido. Melhor que ninguém, Chico soube se comunicar com o povo e fazer rir em larga escala.

O homem nascido em 1931 na cidadezinha de Maranguape (a 26 km de Fortaleza) tinha cultura e erudição suficientes para tentar voos mais altos, se quisesse. De fato, havia diversas camadas de leitura em seu humor, o que lhe garantiu longo alcance na audiência. Como ator, seus dotes pareciam infinitos, o que se provou também em participações menos cômicas no cinema, como em Tieta do Agreste (1996), filme de Cacá Diegues. Mas ele era um artista de massas e gostava de ser sucesso no horário nobre da principal emissora do país, como contou em 2008. “Certa vez, eu estava com o doutor Roberto Marinho [presidente das Organizações Globo até a morte, em 2003] e disse: ‘Doutor Roberto, eu me sinto dono de uma dessas pilastras’. Ele me respondeu [muda a voz]: ‘Chico, você é dono de tudo isso aqui. Você criou as Organizações Globo’. E eu criei mesmo. Quando cheguei à Globo, já era Chico Anysio pra caralho, tinha sido sucesso na TV Rio, na Excelsior, na Tupi e na Record. Cheguei, passei 36 anos lá dentro e fui líder de audiência em todos os horários que me deram. Houve um fracasso: Estados Anysios de Chico City [1991]. Mas, fora isso, sempre dei ibope.” Em suma, não só era o rei da cocada preta como entendia de Brasil e de TV, a tal ponto que sua principal crítica à renovação do humor parece fazer ainda mais sentido na Globo de hoje: em meados dos anos 90, declarou que a empregada dele “não entendia a TV Pirata”, criação de Guel Arraes que levou o besteirol para a emissora, em 1988. Chico não gostava do programa porque “não falava a língua do povo”.


Atualmente, a emissora tem programas e formatos totalmente voltados para as classes C e D, por compreender que os estratos mais altos do país não se fidelizam mais com tanta frequência, por terem mais canais e amplo acesso à internet. Dessa premissa surgiram programas como o Esquenta, de Regina Casé, e os festivais de música gospel. Se antes era preciso ter ao menos um programa de nonsense “de nível universitário”, hoje não é mais essencial. Mesmo o outrora paladino desse humor, o Casseta & Planeta, optou por afinar seu registro com a audiência de noveleiros e fãs de futebol. Se perdeu o público de primeira hora, ganhou em durabilidade. Nesse cenário, uma Escolinha do Professor Raimundo certamente ainda teria seu lugar, com humor de tipos facilmente reconhecíveis: o caipira, o favelado, a gostosa burra, o enrolador, o bêbado.

Haveria, no entanto, uma questão a ser contornada. Chico Anysio teria de se submeter a algumas exigências do nosso tempo. Seria possível para a patrulha do politicamente correto aceitar um personagem como Nazareno, cuja principal piada era tripudiar da feiura da mulher enquanto bolinava a empregada? Ou mesmo um Haroldo, homossexual que decide se “curar”? Será que Tim Tones e sua sacolinha passariam incólumes pelo imenso crescimento de pastores (e parlamentares) neopentecostais, cuja ganância e calhordice ele denunciava já nos anos 80? É verdade que, na primeira década do século 21, Chico já não tinha mais saúde para esse teste hipotético. O enfisema que erodiu seus pulmões não lhe permitia caminhar 5 metros sem que se cansasse, e, como entrevistador, soou-me impensável ouvi-lo dizer que tinha um projeto de programa ao vivo, no qual trocaria de personagem a cada 1 minuto e 20 segundos. Era um gênio apresentando uma ideia genial, mas seu corpo nitidamente não lhe permitiria mais do que sonhar com ela, embora a família discorde. “Em 2008 ele poderia ter feito o programa”, afirma André Lucas. “Até 2009, meu pai tinha plenas condições de comandar uma atração, e acho que ele conseguiria contornar a patrulha politicamente correta, sem o menor problema. Se ele conseguiu contornar até a ditadura, essa patrulha seria fácil.” Há um trecho da entrevista de 2008, porém, no qual Chico não demonstra estar com o desconfiômetro aguçado: “No meu show, conto uma piada de um negão, vestido com a camisa do Flamengo, todo afeminado nos trejeitos. Ele passa pela mãe, que é uma prostituta, e pede a bênção. Aí vem um cara e diz: ‘Ô, negão: você é preto, flamenguista, veado, filho da puta; é complicado, hein?’ Aí o negão responde, com sotaque argentino: ‘Y no sabés lo peor...”. Mas nesse show popular, ninguém riu. Claro, o cara nunca foi à Argentina, não sabe onde fica Buenos Aires”.

Chico fez graça com todos os estereótipos de minorias sem que isso fosse frontalmente ofensivo ou significasse proteção de uma “maioria”: Justo Veríssimo era o branco dominante que detestava pobres, e seu bigode denunciava muito bem a inspiração; gaúcha de Passo Fundo, a senhora Salomé era uma ironia tanto ao conservadorismo quanto ao presidente militar João Figueiredo; Alberto Roberto era uma crítica à classe artística burra – e, de certa forma, adiantava-se à era das subcelebridades imediatas e vazias – , enquanto Baiano e os Novos Caetanos puxavam a orelha de cantores da MPB que hiperdimensionavam seus discursos até caírem no vazio; ecoou Nelson Rodrigues e foi algo conservador – porque tinha idade para isso – quando mirou na juventude classe média para criar o Jovem, em constante choque com os pais, com medo de pagar mico e sempre a um passo da cara de bundão; e já tinha sido acérrimo diante da velhice que não se adaptava aos novos tempos, com o irritadiço Popó. Eram todos brancos e heterossexuais, igualmente produtos da sociedade brasileira miscigenada e mereciam ser tão satirizados quanto o negro Coalhada – jogador falastrão que se enrolava nas entrevistas – e o afetado Haroldo, que tentava esconder o desejo por homens em uma pose hostil de latin lover, que rapidamente se transformava em misoginia (é preciso lembrar ainda que mesmo o revolucionário TV Pirata não abriu mão de piadas que hoje poderiam ser tachadas de homofóbicas, muitas delas desempenhadas deliciosamente por um elenco discretamente gay).

Não que Chico Anysio não tenha caído na armadilha da fácil piada preconceituosa. Por trabalhar em um registro popularesco, o cearense ecoou algumas piadas que vangloriavam o pior do povo brasileiro. Talvez o exemplo mais acabado disso seja o já citado Nazareno, que não só encarnava o machismo jurássico com o bordão “calada!”, como também terminava premiado com uma “casquinha” da empregadinha, que podia ser uma Monique Evans no auge. Para se ter uma ideia, no ano passado, o ator Rodrigo Santanna, que faz o travesti Valéria em Zorra Total, sofreu protestos porque a personagem que lhe serve de escada, a feiosa Janete (Thalita Carauta), termina sempre bolinada no metrô. Valéria sempre a aconselha a “agradecer” pela sorte.


Em um país mais hipersensível, e com espaço de sobra para opiniões nas redes sociais, a vida de Chico Anysio na atualidade não seria fácil, como tampouco seria a do pernambucano Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que ainda é lembrado como o maior comunicador da TV brasileira. No entanto, Chacrinha nunca teve de passar pela patrulha do jornalismo classe média, que, depois de décadas mirando posturas não engajadas da MPB durante a ditadura, achou, nos anos 90, um novo inimigo e passou a exigir programação de qualidade, bombardeando com reportagens e colunas todos os exageros de Gugu, Faustão e tantos outros. Em seu tempo, Chacrinha podia ser extremamente cruel e preconceituoso com os calouros, e o bullying tornou-se parte do que hoje se considera a genialidade dele. O espírito atualmente predominante de inclusão social teria matado a reputação conquistada por Chacrinha – portanto, não é errado dizer que, para fins de posteridade, ele morreu na hora certa, em 1988. De alguma maneira, a saída de cena haveria de beneficiar a memória de Chico mais do que ele poderia sonhar. O problema é que ele nunca esteve preparado para se aposentar em definitivo. “Na minha carreira, o sujeito não se aposenta. Não é como um jogador de futebol, que, aos 35 anos, sabe que não tem como continuar por muito mais tempo”, ele confessou, em 2008. “Nunca me preocupei com isso, porque sempre imaginei que, quando parasse, a Globo me colocaria como supervisor dos programas de humor.”

“O brasileiro é o único povo que ri da própria desgraça”, disse certa vez Chico Anysio, em depoimento à Globo. O difícil talvez seja admitir que havia angústias que não eram textualmente ditas em seus quadros. Mirar no populacho de um Silva, de um Véio Zuza ou de um Bozó era retratar o nosso atraso como civilização. Sabíamos que Chico só satirizava o que efetivamente existia no país. Reconhecíamos aqueles defeitos como nossos, de um país com uma enormidade de aculturados, analfabetos e proletários. E ele transbordava a certeza de que, se fosse norte-americano, seria alguém maior do que Charles Chaplin, um ótimo sambista de uma nota só. Depois que se casou com a ex-ministra da Fazenda e notória “confisqueira” da nação, Zélia Cardoso de Mello – o que foi entendido pelo grande público como um acréscimo de antipatia –, o ator se mudou para os Estados Unidos no fim dos anos 90, acalentando o sonho de ser universal, o que o levou a trabalhar em roteiros para Hollywood. Sem sucesso. Pediu a seu agente norte-americano que apresentasse os scripts sob um pseudónimo inglês para ter mais chances, mas não foi atendido. Não confiava que o multiculturalismo estivesse tão na moda na Meca do cinema a ponto de se apaixonarem por um projeto de um brasileiro, ainda que fosse um extraclasse. Se estava certo ou não, é difícil saber. O certo é que, em 2008, ainda não tinha desistido: traduzia The Manager quando o visitei e não tinha dúvidas de que era um bom trabalho.

Era um narcisista, sim, porém era generoso em doses iguais. Empregou comediantes aos montes na Escolinha, adiando a aposentadoria de craques do humor popular brasileiro, como Costinha, Grande Otelo, Walter d’Ávila, Lúcio Mauro e Zezé Macedo. Apresentou talentos inegáveis, como Tom Cavalcante, Claudia Jimenez e Pedro Bismarck. Legou porções diferentes de talento aos filhos Nizo Neto, Lug de Paula, André Lucas e o hoje mais bem sucedido de todos, Bruno Mazzeo. Deixa saudosos e em dívida trapalhões, como o conterrâneo Renato Aragão, e cassetas, como Claudio Manoel. “Chico não tinha problemas com o Casseta & Planeta. A crítica dele era com a TV Pirata. Nós chegamos a ter a participação dele em um programa, e depois eu o chamei para dar o depoimento de abertura no documentário sobre Wilson Simonal”, declarou Manoel após a morte do mestre. E Chico também foi um grande do stand-up comedy, essa forma de show de anedotas recentemente rebatizada para soar moderna e que, hoje, anuncia-se como a plataforma preferida da nova safra do humor brasileiro. É assim que se embalam piadas feitas para poucos, em tom que beira a ofensa e gera tantos processos, polêmicas e debates sobre os rumos da piada nacional.

A morte de Chico obriga gerações a dar adeus a uma era em que havia encanto e graça e um génio que merecia o espaço que tinha na televisão. Disse certa vez o escritor norte-americano E.B. White (1899-1985) que “o humor pode ser dissecado como uma rã, mas o objeto de estudo invariavelmente morre durante o processo e o que resta só interessa a mentes particularmente científicas”. Dissecar e descontextualizar Chico Anysio faz parecer que seu sucesso foi um exagero, fruto de uma época em que tínhamos menos canais e poucas formas de humor disponíveis. Mas não é bom se arriscar muito nesse método. Toda uma época pode rir de você.